quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Alguns de meus textos para o espetáculo 2014 do Grupo Eco do Santa Marta



Depoimento


Meu nome é Lourdes e eu tenho é muita história para contar.

Vim do Nordeste, de uma região tão esquecida desse Brasil, que até a fome se esquecia que a gente precisava de comer.

Era 1958, quando a seca quase matou todo mundo naquele sertão de Pernambuco, num lugar chamado Lagoinha.

A gente ficava zanzando, procurando alguma coisa no meio do nada, tentando escutar o chocalho das cabras...

Era muita a fome.

Para vocês terem uma ideia, um dia eu vi um vazio imenso, assim como o sol indo embora, assim como oco do espírito na curva da solidão.

Não sei se desmaiei ou o quê.

Só vi quando me deram um mingau e eu acordei.

Difícil foi me recuperar da vergonha.

Fome não é coisa de se ostentar. 




Matrix


Sou índio
Sou negro
Sou branco

Sou povo de um grande país

Sou dendê, farinha d'água, rapadura
Valsa, xote, lundu, samba
Maxixe, quadrilha, coco

Requebros em minha raiz

Sou pinga de macaxeira
Canjica no fogão de lenha
Garapa e água de moringa

Compota de ser feliz

Sou muriqui, borboleta
Frango d'água, tuiuiú
Onça-pintada, peixe-boi
Urubu-rei, arara-azul

Vivendo na corda bamba
Vivendo bem por um triz
Escolho minha caçamba
Escolho minha matriz

Renego a absoluta verdade
Que cala e destrói inclemente
Os sonhos que canto junto
Com a gente que é minha gente



Birosca


Não apenas a balança Filizola
nem o rádio de pilha prateado
no balcão de cimento cor-de-rosa
recendendo a álcool e vozes de outros pátios

Nem tampouco o mostruário vário
no varejo volúvel e indeciso
de fumo, brincos, drágeas, calendários
entre garrafas e caixotes reunidos

Junto a vassouras piaçava
e dorsos de franguinho a quilo
certo olhar também reclama 
e exala
um quê de esperança
um sorriso



Geralda


Sou uma pessoa comum
Sou do trabalho e da festa
Do esforço e da gentileza
Da força e do mutirão

Sou aquela que tem medo e sofre
Com tanta injustiça no mundo
Sou luta e solidariedade
Roça, lenha, telha, talha e lampião

Sou o grito da terra sofrida
Castigada pela ignorância dos homens
Sou a voz da mulher aflita
Que lava, lavra e tece, e que divide o pão

E para preencher o vazio grande das coisas
Sou aquela que sonha, planta e espalha
Os poemas que vai colhendo neste chão



Favela IV


é meigo o silêncio (breve)
de pedras em oferenda
ao sol da tarde grisalha

somos tantos, somos leves
asas inflando o caos
no sereno da arrulhada

ô de casa! ô de casa!
eu vim para catar piolho
no coco desse menino
eu vim para dançar ciranda
tomar ciência e refino

há festas no poente
de lajes descortinadas
no coração da favela

tão simples se torna a vida
quando o tempo é um sorriso 
peneirado na janela




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terça-feira, 21 de outubro de 2014

Grupo cênico-musical Eco do Santa Marta





O Grupo cênico-musical Eco do Santa Marta foi criado há doze anos e faz parte do Grupo Eco do Santa Marta, entidade existente no morro há quarenta anos como espaço de reflexão e intervenção no processo de mobilização comunitária na favela de Santa Marta.

O Grupo cênico-musical Eco do Santa Marta trabalha com textos, depoimentos e canções, que vêm marcados pela história da comunidade, influências de origem e imaginário local.

Nossa arte vem de uma construção coletiva marcada pelo respeito profundo à cultura genuinamente brasileira e à cultura feita pela gente de todas as cores que faz a história que realmente importa em qualquer beco ou viela deste mundo.

Que venham os sonhos, as utopias, as liberdades de toda natureza.

Que venha a arte construída do olhar e dos sentimentos próprios de nossa boa gente.

Queremos falar sobre o morro naquilo que ele tem de sensível e singular.

Queremos explorar o não-dito, as relações entre as gentes do local, os moradores, e os indivíduos que não moram ali.

Mas nada literal ou didático. Não queremos o excesso que aniquila o mistério e a verdade.

Deixamos de lado o que já é visitado em demasia pela sociedade, o que já carrega um inchaço de alusões.

Queremos explorar a liberdade que é a nossa marca de formação e atuação artística.

Queremos continuar sonhando, como fizemos desde a criação do grupo; e construir uma obra-legado que seja referência para jovens no futuro.

Queremos a manutenção de nosso vestuário básico: a sinceridade.

Não queremos a verdade absoluta e valores que não têm nada a ver com nossa realidade e nossa ética.

Queremos mostrar ao mundo que é possível a criação artística de valor e de comprometimento com a sociedade atuante na promoção de convívio saudável e amparo genuíno de homens e mulheres com seus filhos e idosos.

Não estamos nem aí para os academicismos excludentes e a cegueira preconceituosa que paralisa e castra. Somos um grupo que se orgulha dos doze anos de trabalho coletivo para o bem da arte e dos anseios de sua comunidade.

Somos um grupo que supera limitações, tornando continuamente reciclável nosso material de pensamento através do convívio, num somatório de valor e arte que se faz visível.

Aprendemos e elaboramos tudo juntos: o cantar, o dançar, o declamar, o atuar, criando ideias e formas cênicas e musicais próprias para nos expressar e comunicar.

Tentamos traduzir histórias, vivências, estados da alma do povo da Favela de Santa Marta, através de músicas, textos, depoimentos, com a sensibilidade e beleza dos artistas que compõem e engrandecem o grupo cênico-musical Eco do Santa Marta.


Eis um pequeno extrato de um texto de Eça de Queiroz utilizado no próximo espetáculo do grupo Eco:


Há no mundo uma raça de homens com instintos sagrados e luminosos,
com divinas bondades do coração,
com uma inteligência serena e lúcida,
com dedicações profundas,
cheias de amor pelo trabalho e de adoração pelo bem,
que sofrem, que se lamentam em vão.

Estes homens são o Povo.


Volto em breve.
V.





sexta-feira, 22 de agosto de 2014

O Homem que Amava os Cachorros




"O Homem que Amava os Cachorros" (de Leonardo Padura) – Boitempo Editorial.


Incrível romance que se soma a histórias, visões, críticas, avaliações, considerações, análises de um tempo de ruínas de sonhos e crenças.

Um chamado aos homens de bem que se importam com a construção de uma humanidade justa e sem atrocidades.

O homem sempre engolirá o homem?

Barbaridades serão cometidas ad eternum pelo prepotente e tirânico homo sapiens?

Construiremos sempre utopias que escondem labirintos negros e mórbidos, cruéis e violentos, para aprisionarem e corromperem nossas almas?

Aprenderemos algo com a História? E que versão vingará nesse emaranhado disse-me-disse onde o poder faz sua cama de falsas verdades enquanto o povo desenvolve fome, miséria e segregação?

Desconhecimento é cumulativo.















segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Grupo cênico-musical Eco do Santa Marta




O Grupo cênico-musical Eco do Santa Marta está ensaiando novo espetáculo.

Assino a idealização, direção geral, além dos arranjos, alguns textos, músicas e preparo vocal. 

A direção de movimentos será do Marcelo Sandryni (braço direito do Paulo Barros, no carnaval da Unidos da Tijuca até o ano passado e, agora, da Mocidade Independente de Padre Miguel).

É impressionante a força cênica da turma, principalmente na interpretação de minha adaptação da Folia de Reis do Santa Marta.

Não há quem não se arrepie.
Até o vídeo sem graça que botaram no facebook, sem o glamour de apetrechos e indumentárias, é bonito e contagia com a força de seu conteúdo de enorme e singular representatividade.

Parabéns Grupo Eco!




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quarta-feira, 9 de julho de 2014

Plano Nacional de Educação



Tão importante que compartilho com vocês o texto de Jorge de Souza Santos sobre o PNE (Plano Nacional de Educação):



domingo, 29 de junho de 2014
Plano Nacional de Educação - um gol de letra na Copa

Jorge de Souza Santos

Ganhando ou perdendo a Copa teremos importantes gols para comemorar, mesmo que eles tenham ocorrido em disputas ofuscadas pelos enfrentamentos festivos entre as seleções da FIFA. Passado o caso do projeto Andar de Novo (Exoesqueleto) que só ganhou alguns segundos  de atenção das TVs durante a abertura da Copa, outro gol que mereceria ser comemorado com fogos, festas, danças, fantasias e beijos nas praças públicas, nas praias e nos estádios foi a aprovação pelo Congresso do Plano Nacional de Educação – PNE  e a sua sanção, como Lei 13.005/14, pela presidenta da República no último 25/06/2014 (link para acesso ao final deste texto).

A Lei do PNE é um gol de uma partida que não iniciou ontem. Trata-se de uma Lei cuja história é sustentada pela dedicação de gerações de militantes que lutaram pela valorização da Educação no Brasil desde a Constituinte de 1933, que fizeram de tudo para avançar nos subsequentes períodos democráticos e que bancaram os enfrentamentos durante as ditaduras do Estado Novo e do Golpe de 64. Embates que viabilizaram a articulação das várias entidades que formaram, em 1986, o Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública – FNDEP e que fizeram constar no art. 214 da Constituição a obrigação de existência de uma Lei contendo um plano decenal, com diretrizes, objetivos, metas e estratégias para a Educação no país, o Plano Nacional de Educação.

Resulta dessa luta o fato da nossa Constituição explicitar que o PNE deve ser elaborado de forma a se alcançar:  a erradicação do analfabetismo; a universalização do atendimento escolar; a melhoria da qualidade do ensino; a formação para o trabalho; a promoção humanística, científica e tecnológica do País; o estabelecimento de meta de aplicação de recursos públicos em educação como proporção do produto interno bruto.

A Lei do PNE não é um consenso mesmo entre os que a defendem, mas os seus adversários certamente não estão entre os que buscam aumentar a distribuição da riqueza nacional, e nunca é demais repetir: produzida pelos trabalhadores brasileiros.

As distâncias entre os projetos e as realizações práticas são sempre enormes, especialmente no caso dos projetos políticos. Mas, isso não é surpresa, é um dado da realidade. Não é por  acaso que o primeiro PNE, elaborado para o período 2001 – 2011,  foi tímido e com resultados que deixaram muito a desejar. E também não é por acaso que o projeto de PNE que deveria vigorar nos dez anos seguintes apesar de ter sido encaminhado para a discussão em 2010, só agora, quatro anos após, foi aprovado. Não foi um gol fácil resultado de um craque artilheiro plantado em posição especial esperando para chutar, nem mérito de um driblador miraculoso que venceu sozinho seus marcadores. Foi um gol construído por um conjunto, gol catimbado, com idas e vindas, e com muitos passes até a sua conclusão.

O PNE atual traz consigo uma meta importantíssima que foi barrada no Plano anterior. Ele obriga que até o fim da sua vigência, em 2024, devam ser alocados para a área de Educação os recursos de 10% do PIB nacional, escalonados de forma que 7% já sejam alocados até o quinto ano, 2019.  E outro fato que não pode deixar de ser mencionado é a iniciativa do governo federal de comprometer a priori ganhos oriundos da exploração do petróleo do Pré-sal vinculando-os à formação de recursos para a Educação. Considerando que o PIB nacional hoje é da ordem de 4,2 trilhões de reais,  dez por cento significa uma bufunfa de respeito. São  420 bilhões de reais – o que é muita grana em qualquer lugar do mundo. Alguns jornais informam que poucos países têm este tipo de comprometimento, tanto no volume como na obrigação legal de realizar estes investimentos.

A existência do PNE por si só não resolve os problemas dos trabalhadores nem as carências do setor Educação. É preciso transformá-lo em realizações práticas que, conforme a própria Lei, se desdobram em ações estaduais e municipais o que não será fácil. Cada merreca desses 420 bilhões será disputada e poderá ir parar no salário do professor, na merenda escolar, no computador da escola pública, na construção dos campi universitários, nos projetos de pesquisas, mas também poderá ir parar nos cofres das empreiteiras, nos bolsos dos donos das arapucas privadas de ensino, dos seus representantes e capachos infiltrados na administração pública, nos intermediários, nas campanhas e nos bolsos de governantes e parlamentares comprometidos com grupos de poder  e de interesses  privados que, a propósito, já estão organizados para abocanhar suas boladas. O posicionamento e a mobilização política da nossa sociedade determinará o lado para o qual a balança penderá.

O fato é que o PNE é um instrumento importante e a sua  existência assim como as suas possibilidades de desdobramentos são um avanço político. Pelo menos nessa área existirão elementos consistentes para referenciar os debates, as opiniões, as tomadas de posições, as escolhas e a participação direta, se for o caso, em vez do blá, blá, blá, frouxo, preconceituoso, despolitizado e desinformado que polui o tráfego de mensagens eletrônicas e mediocriza os bate-boca sobre política.

Ainda um outro ponto importante. Foi criada uma base de informações que pode ser acessada por um site denominado Observatório do PNE que pretende concentrar as informações sobre os desdobramentos do assunto. Eu recomendo que, no mínimo, seja acessado um curto vídeo sobre o funcionamento do Observatório (quem se der ao trabalho, observe no vídeo os grupos que construíram o Observatório).

No mais, eu gostaria de concluir com uma mensagem do tipo “agora é só correr pra galera”, mas infelizmente não é assim. Ainda tem muito jogo pela frente.


Assista ao vídeo sobre o Observatório do PNE

Texto integral da Lei 13005/14 - Lei do PNE

Acesse o site Observatório do PNE 

Texto também postado no Blog do jorsan

Rio, 28/06/2014

segunda-feira, 7 de julho de 2014

Waly Salomão



Dedico à minha sobrinha Isadora, amante fiel de viagens por esse mundão afora, um poema de Waly Salomão, do livro Algaravias, não sem antes avisá-la de que ele provavelmente só terá sido capaz de emitir aquela poética opinião após muitas viagens.



Antiviagem


Toda viagem é inútil,
medito à beira do poço vedado.

Para que abandonar seu albergue,
largar sua carapaça de cágado
e ser impelido corredeira rio abaixo?
Para que essa suspensão do leito
da vida corriqueira, se logo depois
o balão desinfla velozmente e tudo
soa ainda pior que antes pois entra
agora em comparação e desdoiro?

Nenhum habeas corpus
é reconhecido no Tribunal de Júri do Cosmos.
O ir e vir livremente
não consta de nenhum Bill of Rights cósmico.
Ao contrário, a espada de Dâmocles
para sempre paira sobre a esfera do mapa-múndi.
O Atlas é um compasso de ferro
demarcando longitudes e latitudes.

Quem viaja arrisca
uma taxa elevada de lassitudes.
Meu aconchego é o perto,
o conhecido e reconhecido,
o que é despido de espanto
pois está sempre em minha volta,
o que prescinde de consulta
ao arquivo cartográfico.
O familiar é uma camada viscosa,
protetiva e morna
que envolve minha vida
como um para-choque.

Nunca mais praias nem ilhas inacessíveis,
não me atraem mais
os jardins dos bancos de corais.

Medito à beira da cacimba estanque
logo eu que me supunha amante
ardoroso e fiel
do distante
e cria no provérbio de Blake que diz:

EXPECT POISON FROM THE STANDING WATER.




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sexta-feira, 9 de maio de 2014

Blue Jasmine

                                                 


Blue Jasmine: novo filme de Woody Allen (2013), com Cate Blanchett, Alec Baldwin, Sally Hawkins, entre outros.

Uma obra-prima! Com uma impressionante e magnífica atuação de Cate Blanchett.

O filme é denso e aborda, de forma ao mesmo tempo enxuta e profunda, as complexidades psíquicas de alguns modelos de nossas possíveis atuações no mundo, de capacidades e incapacidades, (in)adaptabilidades, cegueiras, fragilidades e limites.

O título é lindo e faz contraponto perfeito com a densidade, a amargura, o peso e a acidez do tema que sublinha toda a trama.

O humor woodyalleniano se dissolve, a meu ver, na dura carga emocional que prevalece durante todo o tempo; mas ameniza a dor que porventura possamos sentir diante das retratadas, reais e metafóricas, encruzilhadas insuportáveis, ou vias sem saídas aparentes, em que topamos repetidamente nesta vida.

Roteiro, tomadas de cena, fotografia, atuações, flashbacks, agilidade de câmera em ambientes diferenciados, respeito e atenção às nuances da evolução do estado psíquico da personagem principal, tudo em perfeito encaixe, como numa performance orquestral de sensibilidade e cuidado.

Adaptação originalíssima de "Um Bonde Chamado Desejo" (de Tennessee Williams), que foi filmado também por Elia Kazan. 

Mas tem luz absolutamente própria esta versão de Woody Allen, distribuindo cores, além de espetadelas e arrepios, particulares de seu estilo e genialidade.

                                                   



                                                       

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segunda-feira, 14 de abril de 2014

Ao vento


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Ao vento


Bem que eu poderia aceitar
todos os verbos e silêncios descabidos
para me manter em trincheiras sóbrias
de vazios e destroços corrosivos

mas me acendo no ouro 
exuberante e aflito desta tarde
e com meus olhos voltados para o mar
sigo embalando contente o horizonte
para brindar com Deus o viço deste mundo

mas Ele insiste na costumeira esquiva tola
de neblinas e circunstâncias fugidias

sem contar que não perderia tempo com poetas
muito menos comigo
eu e minhas poucas rezas num mar de quinquilharias

                                                               Vera Versiani



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terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Feras de lugar nenhum




"Feras de Lugar Nenhum", de Uzodinma Iweala / ed. Nova Fronteira.



Um soco no estômago.

É a definição cabível para este livro.
Há coisas nesta vida que mal imaginamos que possam existir. 
Para isso se faz necessário alguém, como o autor (Uzodinma Iweala nasceu em 1982, ou seja, tem hoje 32 anos) para nos trazer à tona uma realidade trágica, cruel, uma faceta do que amiúde criamos cega e insanamente em nosso mundo de medos, violências, inconsciências, ignorâncias, sofrimentos, tristezas que preferimos jogar para debaixo de nossos tapetes egoístas ainda circunstancialmente protegidos.

Um texto vigoroso, com uma escrita simples, de velocidade alucinante, que não nos deixa largá-lo nem por um minuto da primeira à última linha.


Uzodinma Iweala é hábil, poderoso em sua função de escritor, mas vai muito além do que minha expectativa de leitora pode almejar: abre mundos, revolve vísceras, faz refletir e me coloca definitivamente no sempre necessário movimento construtivo na superfície desta terra. Pede ações, urgências, óbvias atenções, indignações expressas e transparentes.


A ternura que forra o suor e sangue da narrativa me impulsiona ainda mais profundamente na direção da procura eficaz de mecanismos para a construção de alicerces para o bem, para o amor, para a resistência.







sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Eles eram muitos cavalos




Impressionante o livro Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato (ed. Record)! Muito bom.
Linguagem ágil, rica, na construção de um mosaico, uma colagem, que retrata a cidade de São Paulo através de personagens escolhidos a dedo na composição de uma grande dor, de uma gigantesca injustiça, de uma calamidade social assustadora que nos prega no chão de nossa impotência, covardia ou ignorância.
Ao mesmo tempo, é poesia pura.
Há ternura, compaixão e até esperança na exposição de um ruidoso painel de angústias e desacertos.

Na verdade, os personagens de Ruffato representam muito mais do que viventes de uma "macrópole" nacional. Deixam escapar todas as possíveis querelas e súplicas de um mundo urbano opressivo e violento!




"Para Ruffato, o homem é o cavalo na sua brutalidade, na sua vocação bestial para rebanho desgarrado. Cavalos caídos por aí, batendo os cascos nos cimentos das calçadas, lutando ferozmente pela sobrevivência, cumprindo seu duro serviço" (Raquel Naveira).



Aí vai trecho do Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles, em que Ruffato se inspirou para dar título ao livro:




Romance LXXXIV ou Dos Cavalos da Inconfidência

Eles eram muitos cavalos,
ao longo dessas grandes serras,
de crinas abertas ao vento,
a galope entre águas e pedras.
Eles eram muitos cavalos,
donos dos ares e das ervas,
com tranquilos olhos macios,
habituados às densas névoas,
aos verdes, prados ondulosos,
às encostas de árduas arestas;
à cor das auroras nas nuvens,
ao tempo de ipês e quaresmas.

Eles eram muitos cavalos
nas margens desses grandes rios
por onde os escravos cantavam
músicas cheias de suspiros.
Eles eram muitos cavalos
e guardavam no fino ouvido
o som das catas e dos cantos,
a voz de amigos e inimigos;
- calados, ao peso da sela,
picados de insetos e espinhos,
desabafando o seu cansaço
em crepusculares relinchos.

Eles eram muitos cavalos,
- rijos, destemidos, velozes -
entre Mariana e Serro Frio,
Vila Rica e Rio das Mortes.
Eles eram muitos cavalos,
transportando no seu galope
coronéis, magistrados, poetas,
furriéis, alferes, sacerdotes.
E ouviam segredos e intrigas,
e sonetos e liras e odes:
testemunhas sem depoimento,
diante de equívocos enormes.

Eles eram muitos cavalos,
entre Mantiqueira e Ouro Branco
desmanchado o xisto nos cascos,
ao sol e à chuva, pelos campos,
levando esperanças, mensagens,
transmitidas de rancho em rancho.
Eles eram muitos cavalos,
entre sonhos e contrabandos,
alheios às paixões dos donos,
pousando os mesmos olhos mansos
nas grotas, repletas de escravos,
nas igrejas, cheias de santos.

Eles eram muitos cavalos:
e uns viram correntes e algemas,
outros, o sangue sobre a forca,
outros, o crime e as recompensas.
Eles eram muitos cavalos:
e alguns foram postos à venda,
outros ficaram nos seus pastos,
e houve uns que, depois da sentença
levaram o Alferes cortado
em braços, pernas e cabeça.
E partiram com sua carga
na mais dolorosa inocência.

Eles eram muitos cavalos.
E morreram por esses montes,
esses campos, esses abismos,
tendo servido a tantos homens.
Eles eram muitos cavalos,
mas ninguém mais sabe os seus nomes
sua pelagem, sua origem...
E iam tão alto, e iam tão longe!
E por eles se suspirava,
consultando o imenso horizonte!
- Morreram seus flancos robustos,
que pareciam de ouro e bronze.

Eles eram muitos cavalos.
E jazem por aí, caídos,
misturados às bravas serras,
misturados ao quartzo e ao xisto,
à frescura aquosa das lapas,
ao verdor do trevo florido.
E nunca pensaram na morte.
E nunca souberam de exílios.
Eles eram muitos cavalos,
cumprindo seu duro serviço.

A cinza de seus cavaleiros
neles aprendeu tempo e ritmo,
e a subir aos picos do mundo...
e a rolar pelos precipícios...