quinta-feira, 31 de março de 2011

Máscaras

O Grupo cênico-musical Eco do Santa Marta, que dirijo há quase nove anos, utiliza máscaras em um de seus números no último espetáculo montado.


A máscara sugere busca de identidade, justamente pela ausência de identificação clara, óbvia, explícita, do eu que o utiliza, quando ocorre uma associação pactual imediata com o disfarce, com o recolhimento desse eu. Desta forma, sua utilização chama atenção para o "quem somos" e para o "a que viemos".


Máscaras sugerem mistério a nós espectadores, e até receio pelo que nos é desconhecido. São utilizadas tanto como adereços, como instrumentos capazes de mobilizar sentimentos e reações emotivas de todo tipo.


É tênue o limite entre o eu real, criador, e o eu criado, exposto. E a máscara explicita, valoriza isto, a criatura. A máscara é moldura.


É o símbolo maior das muitas "máscaras" que usamos no dia a dia para interagirmos uns com os outros e construirmos o sutil de nossas multifacetadas personalidades.


As máscaras têm origem religiosa. O homem, ao envergar uma delas, estaria manifestando o espírito da divindade que ela representasse.


É um objeto de destaque na cultura africana, como em outras culturas mundo afora.


No teatro grego e romano a máscara tem a função de estabelecer a identificação, a relação forte entre o personagem e o ator. Serve como reforço na assunção absoluta do papel que devemos representar.


Máscara é introversão, proteção, segurança, tanto quanto é procura, escape, ousadia, liberdade.


O que se procura esconder é o que se escancara. O que se escancara se transforma... 

Waly Salomão, segundo Antonio Cícero, em Pan-cinema Permanente, referia-se ao grande teatro que é o mundo: "são máscaras sobre máscaras, não há um real último".


O fato é que usamos máscaras para mostrar a cara.


Usamos máscaras para nos expor.
.
Usamos máscaras para sermos o que somos.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Há pessoas com total inaptidão para o amor ou para a felicidade.
Seria o mesmo que dizer: os tremendamente chatos existem!!
Não descarto a possibilidade de ser um deles, mas só trago o assunto à baila como pano de fundo para alguns dos recortes de hoje:




    O amor é o sangue do sol dentro do sol. A inocência repetida mil vezes na vontade sincera de desejar que o céu compreenda. Levantam-se tempestades frágeis e delicadas na respiração vegetal do amor. Como uma planta a crescer da terra. O amor é a luz do sol a beber a voz doce dessa planta. Algo dentro de qualquer coisa profunda. O amor é o sentido de todas as palavras impossíveis. Atravessar o interior de uma montanha. Correr pelas horas originais do mundo. O amor é a paz fresca e a combustão de um incêndio dentro, dentro, dentro, dentro, dentro dos dias. Em cada instante de manhã, o céu a deslizar como um rio. À tarde, o sol como uma certeza. O amor é feito de mar, de ondas na distância do oceano e de areia eterna. O amor é feito de tantas coisas opostas e verdadeiras. Nascem lugares para o amor e, nesses jardins etéreos, a salvação é uma brisa que cai sobre o rosto suavemente.

(José Luís Peixoto, em Uma Casa na Escuridão, ed. Record)





Tudo seduz. Mesmo o pequeno pássaro
nos atrai em meio à pura folhagem,
a flor, não tendo espaço, impõe-se para nós,
e que mais exige o vento? Só o deus,
qual uma coluna, deixa passar, distribuindo,
bem no alto, e sustentando, em ambas as partes,
a leve curvatura de sua impassibilidade.

(Rainer Maria Rilke; trad. Marco Lucchesi)




Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto.
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.

(Fernando Pessoa)




Grosso.
           Estúpido.
                         Panaca.
                                    Calhorda.

(Namorar engorda).

Crápula.
            Tapado.
                        Bronco.
                                   Demente.

(O amor é incompetente).

 Asno.
          Covarde.
                         Idiota.
                                    Canalha.

(Eros sempre perde a batalha).


(Vera Versiani, em Nada Para Humanos, ed. Oficina Editores)



Não sofremos por não sermos amados.

Sofremos por acreditarmos que o somos.
(Roland Barthes)


Há algo curiosamente monótono na felicidade dos outros.
(Aldous Huxley)


As relações estão fadadas ao fracasso.
A alegria não quer saber de versões desalinhadas
de um mesmo traço.
(V.V.)


Sinto informá-lo: quando a felicidade bater à sua porta,
é quase certo que não será reconhecida!
(V.V.)


O melhor do amor é a ilusão do amor.
(V.V.)


Sou infeliz, Logo, existo!
(V.V)


Felicidade alheia causa inveja.

Infelicidade alheia traz consolo.
Matemos o próximo.
(V.V.)

sexta-feira, 4 de março de 2011

Waly Salomão I, II, III, IV e V

CARTA ABERTA A JOHN ASHBERY


A memória é uma ilha de edição – um qualquer
passante diz, em um estilo nonchalant,
e imediatamente apaga a tecla e também
o sentido do que queria dizer.

Esgotado o eu, resta o espanto do mundo não ser
levado junto de roldão.
Onde e como armazenar a cor de cada instante?
Que traço reter da translúcida aurora?
Incinerar o lenho seco das amizades esturricadas?
O perfume, acaso, daquela rosa desbotada?

A vida não é uma tela e jamais adquire
o significado estrito
que se deseja imprimir nela.
Tampouco é uma estória em que cada minúcia
encerra uma moral.
Ela é recheada de locais de desova, presuntos,
liquidações, queima de arquivos,
divisões de capturas,
apagamentos de trechos, sumiços de originais,
grupos de extermínios e fotogramas estourados.

Que importa se as cinzas restam frias
ou se ainda ardem quentes
se não é selecionada urna alguma adequada,
seja grega seja bárbara,
para depositá-las?

Antes que o amanhã desabe aqui,
ainda hoje será esquecido o que traz
a marca d'água d'hoje.

Hienas aguardam na tocaia da moita enquanto
os cães de fila do tempo fazem um arquipélago
de fiapos do terno da memória.
Ilhotas. Imagens em farrapos dos dias findos.
Numerosas crateras ozoniais.
Os laços de família tornados lapsos.
Oco e cárie e cava e prótese,
assim o mundo vai parindo o defunto
de sua sinopse.
Sem nenhuma explosão final.

Nulla die sine linea. Nenhum dia sem um traço.
Um, sem nome e com vontade aguada,
ergue este lema como uma barragem
anti-entropia.

E os dias sucedem-se e é firmada a intenção
de transmudar todo veneno e ferrugem
em pedaço do paraíso. Ou vice-versa.
Ao prazer do bel-prazer,
como quem aperta um botão da mesa
de uma ilha de edição
e um deus irrompe afinal para resgatar o humano
fardo.

Corrigindo:
                    o humano fado.





UM LEGADO
DE WALLACE STEVENS


Assim como quem
       – agnóstico, cético, sarcástico, incréu –
estende réstias de alho por toda a casa,
para afastar mau agouro.

Assim como quem plurifica
a ferocidade da mente,
zela pela aura, aurora de cada palavra,
com ritmo penetra, sexualiza a fala,
colore com finuras, matizes de papel de seda,
                                   o balão do pensamento
tornando-o inda mais chiaroscuro, espermático;

e com cerol de vidro moído, cola de sapateiro,
afia, tempera o laço mágico
que rabeia a sorte, compele o futuro
e provê um canto, um giro diverso para cada ato.

Um retângulo de morro/
um recorte losango de céu azul-turquesa/
o teatro gestual-masturbatório das mãos/
linhas e linhas e linhas/
e o móbile rompe nuvens,
rasga novos desenhos sobre o mapa celeste.

Cumprir uma receita ancestral,
de prístina pureza:

encharcar ao longo do poema inteiro,
do começo até o fim,
metáforas, metáforas, metáforas.

Metáforas à mancheia:

uma arraia-miúda
intenta
ser deus entre deuses.





ANTI-VIAGEM


Toda viagem é inútil,
medito à beira do poço vedado.

Para que abandonar seu albergue,
largar sua carapaça de cágado
e ser impelido corredeira rio abaixo?
Para que essa suspensão do leito
da vida corriqueira, se logo depois
o balão desinfla velozmente e tudo
soa ainda pior que antes pois entra
agora em comparação e desdoiro?

Nenhum habeas corpus
é reconhecido no Tribunal de Júri do Cosmos.
O ir e vir livremente
não consta de nenhum Bill of Rights cósmico.
Ao contrário, a espada de Dâmocles
para sempre paira sobre a esfera do mapa-múndi.
O Atlas é um compasso de ferro
demarcando longitudes e latitudes.

Quem viaja arrisca
uma taxa elevada de lassitudes.
meu aconchego é o perto,
o conhecido e reconhecido,
o que é despido de espanto
pois está sempre em minha volta,
o que prescinde de consulta
ao arquivo cartográfico.
O familiar é uma camada viscosa,
protetiva e morna
que envolve minha vida
como um parachoque.

Nunca mais praias nem ilhas inacessíveis,
não me atraem mais
os jardins dos bancos de corais.

Medito à beira da cacimba estanque
logo eu que me supunha amante
ardoroso e fiel
do distante
e cria no provérbio de Blake que diz:

EXPECT POISON FROM THE STANDING WATER.





RUA CARIOCA 1993


Estilo tísico (corte cronológico século 19)
de ser poeta.
Estilo tísico abre a boca e fala de rua
como se pavimentasse
com paralelepípedos
seu gabinete engasgado.
O que estilo tísico pensa ser rua:
rua não é nem rua foi.
Saudades do sapo ou do peixe-boi.
São imagens roubadas de poemas e poetas,
recortes, recopilações, reprises,
amostras grátis,
coágulos sem sangue,
próteses da fantasmagórica Rua do Sabão.

Sem a vitalidade amarelo-estridente
de um cravo de defunto.





TAL
QUAL
PAUL
VALÉRY


dorenavant, doravante,
(somente em algum caso específico
com calculado efeito retroativo)
cada poema
...onde tudo é equilíbrio
e cálculo
como na música de Stravinsky.
Valéry não é arremedo de escudo
para o acuado remoedor do ar de medo:
um poema deve ser uma festa do intelecto.
E poemas e festas e intelectos implicam riscos.
Cuidado para não escrever:
ali, onde tudo não é senão ordem e beleza,
luxo, calma e volúpia.
Mas nada de emenda
pois este paraíso-artefato
só se atinge de fato no poema.
Por que proibi-lo de ser o delírio das sensações?
Por que propor, ó fedelho, um cinto de castidade
e uma presilha para uma donzela-musa
deflorada e redeflorada cuja virgindade
só se recompõe por gosto de ser
deflorada e redeflorada mais?
Às vezes, ela clama para ser estrupada
mas não por você que fede a cueiros.

Sei, com os antigos e alguns vivos,
que a fobia castra os ritmos
e as formas da coragem.
Sá de Miranda, Camões, Cesário,
João Cabral, Augusto, Ashbery:
a resolução de ser poeta
sem precisar o peito
estufar
de vãvaronice.
E, no mais,

       POESIA É O AXIAL.