domingo, 19 de junho de 2011

Gonçalo M. Tavares I

Deixo aqui o registro de algumas das belas páginas "poético-aforísticas" do Breves Notas Sobre o Medo, de Gonçalo M. Tavares.




Problemas, respostas


  A matéria-prima, falemos assim, da resposta parece ser de menor valor cambial que a da pergunta. Isto se as colocarmos – pergunta e resposta – no mercado dos homens em cuja existência a curiosidade tomou o seu centro. No entanto, como bem sabemos, estes homens são uma minoria. Em todos os outros mercados (e há tantos), prevalecem homens que decidem sobre a vida e a morte de outros, homens cujo destino lhes mostrou já um lado trágico, inultrapassável; e nestes outros homens, nestes outros mercados, cada resposta é o único valor a ser transmitido. Aos seus filhos, por herança, esses homens deixarão decisões e modos de viver; enquanto de oferta às pessoas que odeiam deixarão aquilo que não conseguiram resolver em vida – tal como, para assustar, os criminosos deixam, à porta do inimigo, a cabeça degolada de um cavalo.




Os imortais


  Como um poeta que se esforçasse por ser elogiado por outra coisa – que não a fragilidade que exige de imediato uma coragem – , certos homens insistem em não esperar a morte e devido a essa distração são sempre apanhados – como a mulher adúltera pelo marido – descompostos, de corpo desnudado, exibindo por falha uma luz imoral que sempre juraram não ter.
  E porque observados, e incapazes – eis o pior – de acionar o mais leve movimento de pudor, os que fingiam imortalidades caem por completo sem um único preparativo terminado. Morrem no momento em que traem, quando os velhos manuscritos aconselham a acabar-se a vida na posição do sacrificado, na figura daquele que outros enganaram e que outros venceram.




Falar, ouvir


  Tratas as palavras que dizes como se fossem passageiros de primeira classe e tu um empregado servil e, face às palavras dos outros, comportas-te como se elas fossem o empregado servil e tu o passageiro que viaja em primeira classe.




Moral


Eis então – porque nada em ti caiu de podre – que morres contente como se tivesses nascido já dentro de um jogo e todas as tuas ações fossem no sentido de, com delicadeza, perceber primeiro as regras e só depois decidir em que equipe se combate e quais os objetivos e movimentos possíveis. Porém, há jogos complexos cujas regras parecem ter sido feitas para que nenhum mortal as consiga perceber.
 Trata-se de jogar, insiste contigo o mundo. Mas com que regras?, insistes tu com o mundo. E a resposta acaba sempre por chegar no momento ou no espaço errados. Ou então numa Língua da qual conheces dois ou três vocábulos, insuficientes sequer para, à hora da refeição, num restaurante, escolheres o prato certo.




Acalma-te!


  Mesmo que desças até o ponto em que deixas de observar a claridade da superfície, não te inquietes demasiado, pois a superfície do mundo, também ela, em poucas horas (a noite aproxima-se) ficará escura.

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