domingo, 29 de maio de 2011

Inês Pedrosa

"O muro desmoronou-se, Berlim já não se alimenta de mentiras... No entanto, os anjos continuam a deambular pelas ruas da cidade, atraídos pelos fragmentos de solidão que transformam as pessoas em muros."




"O desejo é atraído pelo muro e pelas mentiras, alimenta-se deles sem querer, porque o desejo não sabe senão desejar. Esbarra num muro, olha para o infinito do céu e transforma a rigidez do cimento numa montanha rochosa a escalar. Da areia das palavras faz ouro puro, escaldante – o desejo não aceita a erosão e o frio do mundo."


"Não há desejos intransitivos – mas há desejos equivocados, perdidos, extraviados, desejos que nos atravessam sem nos tocarem."


"Enquanto o meu marido me batia, pedia em silêncio ao meu pai que descesse do céu para nos salvar. Mas as regras do jogo de Deus são outras, matemáticas e claras, como dizia o meu pai: temos apenas a liberdade das nossas escolhas, os anjos observam, anotam os pontos que as pequenas peças cá em baixo vão somando, suspirarão talvez diante da absoluta previsibilidade da violência, do infinito tédio da violência, e é tudo."




"Seria possível viver sem clandestinidade?"



"A paz é para os mortos. E nem todos, parece-me."


"Quando muita gente acredita em alguma coisa, essa coisa passa a existir."


"O riso é mais contagioso do que a dor."


"Por agora, danço entre os arranha-céus até que eles se diluam, danço como se tu pudesses renascer da água dos meus olhos, inundada de luz."


"A paixão da paciência sempre se sabe rir das paixões maiores."


"Há no bem uma força contínua, uma música inesquecível que permanece para lá da fúria ruidosa do mal."


"Os mortos tornam-se secretos para apaziguar a alma dos vivos."


"O erro é a melhor definição da humanidade."


"O futebol é um altar alternado de desgraças e milagres, o campo da injustiça democrática, do poder arbitrário, da sorte inesperada."


"A mesma dor nunca é a mesma."


"Um anjo não chora, mas nem por isso é menos triste."




sexta-feira, 27 de maio de 2011

"Os Xerifes da Língua"

Meu registro de hoje, contrabalançando as opiniões furiosas veiculadas pelos jornais ao meu redor, serão dois: ambos sobre a recente polêmica em torno do livro didático, adotado pelo MEC, da professora Heloísa Ramos.
O primeiro, uma crônica bem-humorada de José Ribamar Bessa Freire para o jornal Diário do Amazonas, em 22/05/2011.
O segundo,opinião informal, ágil e gabaritada do poeta Cacau Leal enviada por e-mail.






I)

OS XERIFES DA LÍNGUA (José Ribamar Bessa Freire)


Os toques de clarim e o rufar dos tambores chamaram a Infantaria e a 7ª. Cavalaria. O Exército colocou de prontidão os seus soldados armados até os dentes: a tropa da Academia Brasileira de Letras (ABL), o batalhão dos jornalistas, a brigada ligeira dos escritores, a legião de políticos, o pelotão do Ministério Público e até algumas divisões blindadas da Universidade. Todos eles irmanados na santa cruzada lançaram o grito de guerra que ecoou pelos campos, vilas e cidades do Brasil, ameaçando o inimigo:


- “Oh, vós, que desejais assassinar o idioma. Liquidar-vos-emos. Avante!”.


O inimigo é o livro “Por uma vida melhor” da professora Heloísa Ramos, adotado pelo MEC, que é apenas a ponta do iceberg. Lá, a autora apresenta a diferença entre falar e escrever e reconhece que na fala existe muito mais variação do que na escrita. O jeito de falar muda bastante, de acordo com a região, a classe social e a situação de comunicação. A mesma pessoa fala diferente se está em casa, na feira, no bar, no tribunal ou na igreja.


- “Existem várias línguas faladas em português” – já disse o escritor José Saramago, prêmio Nobel da literatura. Nesse sentido, cada um de nós é “bilíngue” na própria língua. Uma dessas línguas é a chamada ‘norma culta’, a de maior prestígio em nossa sociedade, que é usada na sala de aula e está mais próxima da escrita formal. Outras são as variedades populares, regidas por uma diversidade de regras, mas que não chegam a prejudicar a intercompreensão.


Acontece que milhões de brasileirinhos chegam à escola, falando segundo as regras da variedade popular. Por isso, são ridicularizados e humilhados. Dessa forma, são levados a se envergonharem das variedades que a norma culta considera “erradas”, e não se apropriam, nessas condições adversas, da outra variedade considerada “certa”. São reprimidos. Sua fala fica excluída dos espaços públicos, comprometendo o exercício da cidadania.


Esse fato demonstra a incapacidade do Estado, que não encontrou ainda o caminho para permitir que todos os alunos transitem pela norma culta. A autora defende, então, que a alternativa é admitir que a variedade popular EXISTE, tem suas regras e é legítima. As duas normas não se excluem, mas se complementam. O respeito ao jeito de falar do aluno cria um ambiente acolhedor e propício à aprendizagem da norma culta. Só isso.


Mas tal proposta foi suficiente para que os xerifes da língua, que combatem a diversidade, disparassem suas armas alegando, alguns deles, que o MEC quer instituir o “lulês” como idioma oficial. Distorceram – ou no mínimo não compreenderam (será que leram?) - o que está escrito no livro. Eles acham que quem defende o respeito à norma popular quer impô-la ao conjunto da sociedade, como eles o fazem com a norma culta. Por isso, chamam a 7ª. Cavalaria!!!


As cavalgaduras


A cavalaria veio. Na linha de frente, cavalgando um pangaré manco – tololoc, tololoc - o centurião José Sarney (PMDB, vixe-vixe!), membro da ABL, ex-presidente da República e presidente do Senado. No artigo ‘Fale errado, está certo’ na Folha de SP – com a espada em riste, ele faz aquilo que fez ao longo de sua vida: atribui aos outros seus próprios defeitos. Escreve que o livro em questão pretende “oficializar a burrice”, que “o Brasil resolve criminalizar quem fala corretamente”, quando é justamente o contrário, e que “defender a língua é defender a pátria”.


Sarney, defensor da pátria? Quaquaraquaquá! O que é ‘a língua’ e o que é ‘a pátria’ para ele? Em sua ‘pátria’ não cabem os deserdados, apenas os beneficiados pelo nepotismo. Já a ‘língua’ que defende não é um sistema variado, dinâmico e rico, mas se reduz à norma culta, que ele congela. Elimina as demais variedades, proclamando que apenas uma variedade é o português, embora nas conversas telefônicas com sua neta, que ouvimos gravadas e reproduzidas pelos telejornais, a norma usada para contratar o namorado dela, mais coloquial, não foi bem a que ele defende.


Da mesma forma, Sarney, o vixe-vixe, protesta com indignação contra a anarquia:


- “Voltemos ao sistema tribal: cada um fala como quer”.


Imagina! Que país é esse onde cada um fala como quer e não como os sarneys da vida pretendem impor! Sarney, que passou a vida confundindo a coisa pública com a privada, sobretudo no que se refere à grana, quer privatizar também a língua. Acha que ela é sua e dos seus. Não reconhece que se trata de produção coletiva. Nem sequer suspeita que existam regras no falar popular. Exige que a norma culta seja o padrão de correção de todas as demais variedades, confirmando o que escreveu Roland Barthes:


- “A língua não é fascista quando impede de dizer, mas quando obriga a dizer de uma determinada forma”.


Cavalgando um burro alazão – tololoc, tololoc – o presidente da ABL Marcos Villaça também atacou o livro. Reduziu a riqueza do idioma a uma reles operação aritmética, com uma visão primária da matemática, dizendo que admitir outras formas de falar “é como ensinar tabuada errada. Quatro vezes três é sempre doze, seja na periferia ou no palácio”.


A mesma imagem foi usada por sua colega, a escritora Ana Maria Machado, que esqueceu o que ensinou quando foi minha professora de Comunicação Fabular e Icônica na UFRJ. Ela reforça essa comparação infeliz: “Equivale a aceitar que dois mais dois possam ser cinco, com a boa intenção de derrubar preconceitos aritméticos”. Trata-se de uma falácia, porque ninguém está reivindicando que 2+2=5, mas a possibilidade de ser 1+1+1+1 ou 3+1 e até 2+2=5-1 e assim por diante, já que o quatro contém o infinito.


Mas quem se superou mesmo em bobagens foi o jornalista Merval Pereira - um projetinho de Sarney - que veio cavalgando uma besta de sela desembestada: tololoc, tololoc. Em sua coluna no Globo concluiu que se o português popular é legitimo, então ele deveria “ser ensinado nas escolas e faculdades”, como se fosse preciso ensinar o que já se sabe.


Merval condenou ainda o que chamou de “pedagogia da ignorância” e criminalizou o livro adotado pelo MEC: “Se for uma tentativa de querer justificar a maneira como o presidente Lula fala, aí então teremos um agravante ao ato criminoso de manter os estudantes na ignorância”.


Os criminosos


Ops! Vocês ouviram o que eu ouvi? Ato criminoso? Pois é. Parece que os xerifes do idioma querem criminalizar a desobediência às regras da norma culta, reproduzindo o que aconteceu na Cabanagem, a revolta popular mais importante da história da Amazônia (1832-1840). Bilhetes escritos pelos cabanos, anexados aos processos criminais, foram exibidos nos tribunais durante o julgamento como “prova de seus instintos criminosos”. Um deles assinado por Antônio Faustino, um cabano com a patente de major, diz:


“Axome çem monisão que muntas vezis teno pidido. Çe uver cunfelito aqi não çei o qe soçederá. Estarei em pouçilitado de zequtar qalqer prugetu. Halguns camaradas já çairão daqi pur farta de cumer”. Pontu da Barra, 3 de otobro de 1835. Antonho Fostino, manjor de artilharia.


O outro, que também se encontra no Arquivo Público do Pará, “com uma caligrafia feita de garranchos”, é de um chefe cabano que adverte o presidente da Província:


“...E se V. Exa. Responsave pellos mal desta província não sortar logo logo móhirmão e outros patrisio que saxão prezo prometo intrar na sidade comeu inzercito de sinco mil Ome i não dexar Pedra sobre Pedra”.


Um terceiro documento, escrito pelo tenente-comandante de Soure, é um ofício dirigido ao cabano Eduardo Angelim, que ocupou o cargo de presidente da Província:


“Rogo a V. Exa. Nois quera há-remidiar com algun çal e mesmo harmamentu que estamos mointos faltos deles. O mais V. Exa. verá no Pidido jontu q. faz obegeto tãoben desti ufisio. Deos guarde V. Exa. pur moitos anus. Soure, 13 de Dezembru de 1835”.


Que Deus guarde a ABL, Sarney e Merval pelo período de tempo acima indicado, bem como proteja políticos como o senador Álvaro Dias (PSDB-PR), para quem o livro adotado pelo MEC “está transformando a ortografia em pornografia gramatical” e até o senador Cristovão Buarque (PDT), ex-reitor da UnB e ex-ministro da Educação, que declarou sobre o livro em questão:


- “Claro que o livro deseduca e, pior, mantém o apartheid linguístico. Manter o português errado é um crime, é manter a desigualdade”.


Crime? Desigualdade? Segundo Boaventura de Souza Santos, devemos “lutar pela igualdade sempre que as diferenças nos discriminem e lutar pelas diferenças sempre que a igualdade nos descaracterize”. Não se trata, evidentemente, de adotar as normas dos cabanos, mas de recusar sua criminalização.


A professora Heloisa, que fez um trabalho cuidadoso, está sendo tratada como “criminosa” segundo algumas divisões blindadas da própria Universidade que também entraram em ação. Cláudio Moreno, doutor em Letras, ameaçou no jornal Zero Hora de Porto Alegre:


- “O livro tem que ser proibido e as pessoas devem ser punidas”.


Não disse que tipo de punição considera mais adequada. Acionado, o pelotão do Ministério Público partiu para o ataque. A procuradora da República Janice Ascari, do Ministério Público Federal, cavalgando um jegue – tololoc, tololoc - considerou o livro citado como “um crime contra nossos jovens”, ganhando manchete de página no Globo. “Essa conduta não cidadã é inadmissível, inconcebível e, certamente, sofrerá ações do Ministério Público”, avisou a procuradora.


O historiador peruano Pablo Macera comenta que se o Império Romano conseguisse proibir o latim vulgar, como querem agora os xerifes da língua, nós não estaríamos hoje falando espanhol, português, francês, italiano, romeno, catalão – todas elas variantes “erradas” do latim clássico, conhecidas como línguas vulgares na Idade Média.


A troca de ‘l’ em ‘r’, que costuma ser considerada como “atraso mental”, quando alguém fala “pobrema”, “craro” ou “pranta” é um fenômeno fonético presente na formação da língua portuguesa, como esclarece Marcos Bagno. Palavras latinas como “blandu, clavu, flacu, sclavu, obligare” mantiveram o “l” no espanhol, no francês e no italiano, mas ficaram consagrados na norma culta da língua portuguesa com o “r”: “brando, cravo, fraco, escravo, obrigar”, etc.


Os xerifes querem continuar hegemônicos na formulação da política de línguas, autoritária e intolerante. Para isso, manipulam a opinião pública, ignorando a Declaração Universal dos Direitos Linguísticos, aprovada em 1996 em Barcelona, num evento realizado com o apoio da Unesco, recomendando que “os direitos linguísticos sejam considerados direitos fundamentais do homem” e que as diferenças linguísticas sejam respeitadas.


P.S. – Agradeço os colegas do COMIN e da EST, de São Leopoldo (RS), e os colegas da lista Uerj XXI, com quem pude trocar ideias sobre essa questão. Eles não têm, no entanto, qualquer responsabilidade pelo conteúdo ou pela forma desse texto.



II)

Não li o livro de Heloísa Ramos; e nem preciso mais. Porque, vou dizer, destaque assim nem nas escolas de samba. O caso é simples: cadê a democracia? Para certas coisas não há democracia; ou, pensando bem, há sim. Exemplo: como fica o caso do Guimarães Rosa? - que amo!!! Os textos estão escritos num ritmo regionalista, com a forma regionalizada, reproduzindo - como na "flor do lácio" do sertão - o falar conforme é lá no Urucuia. Quantos prêmios levou? Ao tentar ver, frontalmente, o que essa professora disse, mas foi mal interpretada, o Rosa já tinha patenteado. A palavra pronunciada do jeito que os ouvidos ouviram ou escrita do jeito que a vida ensinou não muda o querer do enunciante. Falta democracia linguistica; o discurso da "superioridade erudita" quer se impor unilateralmente. É o tal mundo "acadêmico e estúpido", que quer levar para dentro dos limites do seu reino mas não entende "a Flor do Lácio sambódromo, lusa-américa latim em pó". Quando a coisa interessa ganha fama; exemplo dos surrealistas, que escreviam o que lhes vinha do inconsciente à cabeça, sem a interferência da norma vigente, externa. Nada contra! Não era onde se faz esse discurso, era esse protesto ontem, há mais de meio século. Guimarães e os surrealistas podem. O povo, sem escola, teto e rango e o metarlúgico Lula, ah, esses, ora porra, não podem. Fora!!! Todo esse discurso alarmista e latifundiário é movido pelo preconceito sóciolinguista dos verdadeiros imbecis. Acho, pois não li o livro, que o propósito da professora não era o de pregar a subversão da língua culta. Isso tá na cara! Provavelmente, o que ela enfatizou, ou quis evidenciar, é que o uso da língua popular, com os erros fonéticos e morfológicos da língua viva, habita a casa de veraneio dos privilegiados assim como as palafitas do Capibaribe, sendo que nestas as subversões involuntárias sofrem todos os tipos de preconceitos confederativos . PT 23.05.11



Cacau Leal


PS. Olha só essa do Caetano sobre o "the books" e "os livro": "devemos louvar a hegemonia do inglês (e a sua combinação de altíssima entropia com capacidade de acolher repertórios de outras línguas)? Ou o quê?"


Viva o Olodum!


Viva o Grupo Eco!

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Historieta

O homem baixo, manco, careca, barrigudo julgava-se perfeito. Ou quase. Tinha um defeito, na verdade. Mas este, guardava-o a sete chaves, a ponto de pouquíssimo sair de casa ou se relacionar, para não correr o risco de ser descoberto em sua única e indiscutível imperfeição.

O homem baixo, manco, careca, barrigudo, tanto se escondeu que, esquecendo-se de si, em seu íntimo se perdeu.

Não mais atinava com as complexas simplicidades de encontros e desencontros em que se constituíam os dias.

Não mais lhe percorriam os becos da memória as delícias não dissimuladas de um cuidar.
Habituara-se a ser o não-ser em que se criara nos labirintos escuros do drible e do embuste incrustados em sua armadura.

Morreu de falência múltipla de discernimento, o homem baixo, manco, careca, barrigudo... e perfeito.
Ou quase.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Aforismos Implicantes

O início de maio me deixou fora do ar. Valeu a pena. A vida se demonstrou não pequena!
Retorno ao Diablog com uma pequena leva de novos e antigos aforismos implicantes de minha autoria:




Que prazer podemos extrair de um acordar cheio de certezas
sustentadas por um punhado de verdades relativas?


A jornada obrigatória de oito horas de trabalho
é tão ignorante quanto a de cinco minutos.


A escravidão acabou para os negros,
ou foi reconhecida para toda a humanidade?


Futebol. Televisão. Família.
Prefiro desligar o domingo.


O sofrimento não ensina, só atrasa!


O que lhe oprime mais: a crítica autorizada que não ampara
ou a falta de critério generalizado?


Chato de galocha é aquele que força nossos ouvidos
a anteparos para seus enganos existenciais.


Seu depoimento é bem mais importante e essencial que sua verdade.


Pense e aja como lhe convém, mas mantenha-me a boa distância
de seus lixos, culpas, cacos e reféns.


Não adianta espernear ou se impor ares de convicto.
O eu de ontem será sempre esse ridículo!


Por um triz é o estado de tudo.


Grandes violências têm fala leve e delicada.


Até no caminho do meio, cuidado, teu rastro deixa cheiro.


Ser velho é ruim em qualquer idade.


Não faça de sua fala um lamento.
E cautela: a palavra escrita não tem a liberdade do pensamento!


Não há mudança para pior.
A não ser que não se desate o nó.